A Constituição do Sujeito

 

         No reino animal, o ser humano constitui a espécie que apresenta o maior grau de complexidade na escala evolutiva. Ele ocupa uma posição especial na natureza, tem sua inteligência e sua capacidade de raciocínio adquirida, faz uso da linguagem articulada e é o que nasce em maior estado de desamparo e dependência. Por causa dessa dependência, o bebê humano precisará, desde o primeiro momento de vida, de cuidado e proteção. Esses virão pela relação do bebê com um adulto, mais especificamente com a mãe, com quem será estabelecida uma importante relação afetiva. A alimentação e os cuidados com o corpo do bebê serão os elementos responsáveis pelas suas primeiras experiências de prazer e desprazer.

   Aconchegado no colo materno e levado ao seio para se alimentar, mais que saciada a fome, ele experimentará um momento pleno de satisfação que, a partir de então, tentará repetir inúmeras vezes, contudo sem jamais consegui-lo. Aquele primeiro momento único é irremediavelmente perdido é denominado por Freud de primeira experiência de satisfação.

   A privação, oriunda dessa experiência (deixar de mamar), marca-o então com falta, a incompletude e abre as portas do desejo humano. Ele tentará reviver essa primeira vivência de satisfação por meio de outros objetos de prazer. Dessa forma instaura-se a matriz do psiquismo humano, cuja evolução e desenvolvimento serão sempre marcados por percalços e vicissitudes; substituição de um objeto por outro.

    Na seqüência evolutiva do desenvolvimento psíquico da criança, alguns momentos se destacam pela importância de suas conseqüências. A capacidade de representação, adquirida com a aquisição da linguagem e do pensamento, é um desses momentos.

   A criança aprende a representar o que vê em imagens e o que ouve em palavras. A representação do que é visto é registrada em imagens; quando esses registros acontecem muito precocemente são denominados de traço mnésico, que posteriormente poderão se articular com representação de palavras.

  A possibilidade para a criança de representar psiquicamente o que vê e o que ouve lhe permitirá a conquista consecutiva da simbolização. A simbolização é a representação indireta de uma idéia, de um pensamento, de um desejo. É a aquisição dessa possibilidade que permitirá ao ser humano, entre outras coisas, lidar com a angústia por meio de representantes simbólicos que a abrandem ou dissipem. Exemplificando, se a presença materna significa amparo e proteção, sua ausência mergulha o bebê em angústia. Ele, então, inventa um representante ou substituto para sua mãe, com que lidará para aplacar sua angústia na falta dela. Winnicott, psicanalista e pediatra inglês, denomina essa primeira criação infantil de "objeto transicional". A chupeta, a ponta do dedo, a beiradinha da fronha, a dobrinha do cobertor, com as quais a criança se apega para dormir, constituem a representação simbólica da ausência da mãe.  Para que ocorra essa substituição ou troca, é feita uma passagem que implica em um deslocamento e elaboração da falta -, essa é a primeira e mais marcante frustração do sujeito.

    Adquirida essa capacidade, esses recursos sempre serão utilizados para lidar com a angústia e os conflitos psíquicos. Os sintomas neuróticos (todos temos) serão oriundos desse movimento. Nesse sentido, portanto, a neurose é uma conquista positiva, constituindo-se em uma saída na luta do conflito psíquico. O maior ou menor grau de sucesso nessas passagens será responsável pela melhor ou pior resposta do sujeito em seu comportamento e em sua relação com as pessoas e com a vida.

       O desenvolvimento psíquico e emocional do sujeito está, numa primeira etapa da vida, inteiramente vinculado ao seu desenvolvimento, físico e biológico. O corpo oferece as condições indispensáveis, por meio das necessidades básicas, para o movimento de constituição do aparelho psíquico.

    Fome, sono, sede e frio são responsáveis pelos movimentos iniciais que inauguram a primeira inter-relação que o ser humano constitui em sua vida: mãe e bebê.

    Atenta desde o início às necessidades físicas do filho cabe à mãe interpretar e socorrer os apelos infantis. Ela vai nomeando os desejos do bebê e as partes de seu corpo.

   O bebê, por sua vez, vai se descobrindo e esboçando os rudimentos da constituição de sua primeira identidade. É com intenso júbilo que, por volta dos 18 meses, ele conquista sua alteridade, se percebendo como outro, separado da sua mãe. A conquista da individuação não é tranqüila. O protótipo biológico da vida intra-uterina deixa suas marcas no recém-nascido, buscado na fantasia primordial do ser humano de um só corpo para ambos. As necessidades vitais de ambos são atendidas pelo corpo da mãe. Reeditar essa fantasia de unidade paradisíaca é criar a ilusão de completude, da não-separação.

    Cabe à mãe propiciar condições ao bebê de separar-se dela, gradativamente, constituindo-se em um outro ser, com corpo e identidade próprias.

   Nos momentos de angústia e solidão, o bebê tentará mergulhar na ilusão de unidade corporal, evitando a ameaça da separação. A mãe será responsável pela maior ou menor possibilidade de o bebê lidar com esses movimentos com menos angústia.

   Para que haja separação e individuação, o bebê precisa que a mãe mantenha com ele uma distância afetiva e tranqüilizadora, que seja ideal no sentido de nem muito perto nem muito distante. É esse espaço, que Winnicott denomina de "espaço transicional", que o bebê poderá simbolizar suas representações lidando com a angústia da ausência.

A aquisição da linguagem é também um ganho que possibilita à criança abrir mão da linguagem corporal para fazer uso de uma nova forma de comunicação. No estádio não-verbal, ainda nos primórdios da vida psíquica, o corpo é parte inseparável da constituição do psiquismo. Gradativamente, com a aquisição do pensamento, a capacidade de representação, com a linguagem e a possibilidade de simbolizar, o bebê lança mão de mecanismos de incorporação, introjeção, projeção e, finalmente, identificação. Ele consegue, então, distinguir o que é como ele e o que é diferente dele. A partir de então, psiquismo se forma e começa a se diferenciar, constituindo diferentes contextos do ser humano.

   A construção do corpo erógeno não está desvinculada da construção do corpo anatômico, uma vez que percalços em um deixam marcas no outro. Dores, doenças, distúrbios alimentares ou do sono, tropeços do corpo biológico poderão interferir nos destinos da constituição do corpo erógeno com suas fantasias subjacentes e vice-versa: angústias, pânico, inseguranças poderão levar o bebê a adoecer fisicamente. Realidade material e realidade psíquica se entrecruzam e, a partir de uma insatisfação, a realidade psíquica se forma, resultando em uma montagem simbólica e imaginária, constituída, portanto, de imagens e significantes.

  Os tropeços e obstáculos na construção do corpo provocam desvios e conseqüências posteriores. Os fenômenos psicossomáticos constituem uma parte dessas conseqüências. A renúncia à materialidade é decorrente da possibilidade de representar e simbolizar, aquisição indispensável ao desenvolvimento do psiquismo humano. A impossibilidade de descolagem da materialidade é responsável, entre outros percalços, pelo fenômeno psicossomático.

   O fenômeno psicossomático geralmente eclode numa circunstância que mobiliza de forma excessiva as emoções do indivíduo. São emoções muito fortes, como ódio, angústia, separações, perdas, que vão além da capacidade do sujeito lidar com essas situações. O adoecer é a "saída" que eles encontram como solução, assim como o sintoma neurótico é a saída encontrada pelo conflito psíquico.

     Na perspectiva psicanalítica essas manifestações psicossomáticas estão ligadas também ao psiquismo humano, real, simbólico e imaginário se articulam em sua encenação. Corpo anatômico e corpo erógeno estão aprisionados um no outro e a lesão seria o traço do real entrelaçado imaginariamente numa manifestação que poderíamos denominar de "real do corpo".

     A psicanálise tem um compromisso ético de trabalhar no sentido de desvendar os mistérios e artifícios psíquicos do fenômeno psicossomático quer no lugar particular (família) ou lugar social (escola).
                                                                                                                                                                             Maria Teixeira